Doha — Primeiro de fevereiro de 2019. Depois de vencer Líbano, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Iraque, Coreia do Sul e os afitriões Emirados Árabes Unidos, o Catar desbanca o Japão por 3 x 1 na final da Copa da Ásia, em Abu Dabi, e conquista a maior glória esportiva da pequena, mas imponente nação de 11.581km² e 2,7 milhões de habitantes. O Correio Braziliense teve acesso ao laboratório da revolução no futebol do país-sede do Mundial 2022. A seta do GPS apontou para um endereço em Al Waab, distrito de Doha. O mapa da mina da seleção convidada para a Copa América 2019 no Brasil — adversária da Seleção aqui em Brasília no amistoso de 5 de junho, no Mané Garrincha —, é um belíssimo complexo de 2,5km².
A reportagem conheceu a Academia Aspire. O Centro de Alto Rendimento Desportivo do Catar é o mais avançado do mundo. Para se ter uma ideia da relevância do espaço, as 27 árbitras selecionadas pela Fifa para apitar a Copa do Mundo Feminina na França, de 7 de junho a 7 de julho, realizavam a pré-temporada no “esconderijo secreto” durante a nossa visita. Malhavam em um moderno campo sintético coberto. Uma delas era a paranaense de Goioerê Edina Alves Batista, vinculada à Federação Paulista de Futebol.
Em entrevista ao Correio, a representante do Brasil na arbitragem do Mundial relata o encantamento com o local. “Que estrutura avançada. Fomos privilegiadas. Tivemos acompanhamento físico, psicológico, tecnológico, realizamos exames na Aspetar uma semana depois que o Neymar havia passado por lá (para avaliar a lesão no quinto metatarso do pé direito). Um sonho, coisa de outro mundo. Aprendemos a operar o VAR (Árbitro de Vídeo) para a Copa do Mundo com uma estrutura de outro mundo. Tem tudo lá, fiquei boquiaberta”, testemunha Edina.
Inaugurada em 2004, a Academia Aspire atrai anualmente clubes de primeira linha da Europa para a pré-temporada, como PSG, Bayern Munique, Juventus e Manchester United. As presenças de astros como Pelé, Maradona, Messi, Ronaldinho Gaúcho, Rafael Nadal, Shaquille O’Neal e Venus Williams; ou de treinadores do quilate de Pep Guardiola, Carlo Ancelotti, Alex Ferguson e Marcello Lippi são registradas com fotografias, quadros ou autógrafos.
O espaço localizado na Aspire Zone é vizinho do Khalifa Stadium, arena de última geração reformada para abrigar a Copa 2022. Tem sete campos anexos de futebol com gramados impecáveis, quadras de basquete, vôlei, futsal, handebol, espaço para ginástica artística, tênis de mesa, esgrima, squash, pista oficial de atletismo, piscinas, salas de conferência, aulas, biblioteca, anfiteatro, domitório, centro médico e físico para a realização de qualquer tipo de avaliação. O pavilhão Aspire Dome pode receber até 13 eventos esportivos e 3.650 pessoas.
O impecável The Torch Hotel Doha, localizado a alguns passos da entrada do estádio, hospedou a Seleção Brasileira antes de um amistoso em Doha. Outra atração é o luxuoso Villagio Mall — onde é possível simular, dentro do shopping, um romântico passeio pelas gôndolas de Veneza, na Itália.
Conheça a Aspire Academy:
Prêmios
Um dos edifícios é uma espécie de bate-caverna. Somente a seleção do Catar tem acesso ao QG. Dos 23 jogadores campeões da Copa da Ásia em fevereiro, 90% foram formados na Academia Aspire na turma de 2008. Sete são titulares da seleção do Catar. Três foram premiados na competição continental: Saad Al Sheeb (goleiro menos vazado); Akram Afif (campeão de assistências) e Almoez Ali (melhor jogador e artilheiro da competição.
O diretor geral é o ex-jogador espanhol Iván Bravo desde 2011. Como a população no Catar é pequena, um dos desafios da Aspire é pinçar talentos em idade precoce nas escolas, desenvolver habilidades multiesportivas e inseri-los no programa. Os melhores recebem bolsa para aprimoramento e até intercâmbio em times satélites da Espanha (Cultural Leonesa e Atlético Astorga), Bélgica (Eupen) e Inglaterra (Leeds United). Em 2015, todos os jogadores que disputaram o Mundial Sub-20 passaram pela Aspire. Antes, faturaram o Asiático Sub-19.
O sucesso inclui esportes olímpicos. O Catar tem cinco medalhas nos Jogos. Três de acadêmicos da Aspire. O atleta Mutaz Essa Barshim ganhou bronze em Londres-2012 e prata no Rio-2016 no salto em altura. Em 2017, foi campeão mundial pulando 2,35m. Nasser Al-Attiyah faturou bronze no tiro esportivo. Na era pré-Aspire, o Catar tinha duas medalhas no megaevento. Bronze com Mohammed Suleiman no atletismo (1.500m) em Barcelona-1992; e com Mohammed Suleiman no levantamento de peso em Sydney-2000.
Mitos, Pelé e Jordan inspiram os atletas
Basta caminhar pela Academia Aspire para... se inspirar. Frases de mitos do esporte são reproduzidas nas paredes. Uma delas é de Michaer “Air” Jordan na quadra de basquete. “Eu errei mais de 9.000 arremessos na minha carreira. Perdi quase 300 jogos. Em 26 oportunidades, confiaram em mim para fazer o arremesso da vitória e eu errei. Eu falhei muitas e muitas vezes na minha vida. E é por isso que tenho sucesso.”
O meia Wagner, ex-Vasco, Cruzeiro e Fluminense, é testemunha do sucesso. Aos 34 anos, defende o Al-Khor desde o ano passado. Em fevereiro, viu a festa do povo catari para os campeões da Copa da Ásia. A explicação para a revolução é uma alfinetada no combalido futebol brasileiro. “Tudo aquilo que era para ser certinho no Brasil, acontece aqui. Eles estão colhendo os frutos na seleção com treinador espanhol, comissão espanhola, a forma de jogar espanhola, com posse de bola, pressão na saída de bola, construção sem afobação, erros”.
Os conceitos são aprendidos na Academia Aspire. “Eles implementaram uma fórmula anos atrás e trabalharam em cima dela para não serem tão dependentes dos jogadores de fora (naturalizados). Hoje, o Catar é um dos países com menos cota para estrangeiros. Só podem três. Na Arábia (Saudita) e na Turquia, sete. Eles fizeram um trabalho em longo prazo. Colocaram as crianças para aprender na Aspire, onde eles treinam juntos a manhã toda com os mesmos técnicos, a mesma metologia desde uma determinada idade. A partir disso, eles vão selecionando os melhores até o sub-23. Daí em diante, vão sendo distribuídos pelos clubes do país e satélite”, explica ao Correio.
Jogador do Catar nas Eliminatórias para a Copa 2018, Rodrigo Tabata, ex-Santos e Goiás, fez parte do processo de evolução da seleção durante a chegada de jogadores formados na Aspire. “São muitos anos trabalhando juntos, desde garoto, a partir de um investimento do governo do Catar que começou lá atrás, em 2004. Dei a minha contribuição no ano em que defendi a seleção e fico muito feliz com o momento que eles estão vivendo”.
A árbitra Edina Alves Batista voltou da Aspire com uma certeza. “Ficamos deslumbradas. Eles não estão medindo esforços para preparar a melhor Copa e a melhor seleção deles para a Copa de 2022. É muito fácil treinar lá, uma estrutura que eu jamais havia visto”.
*O repórter viajou a convite da Associação de Futebol do Catar