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Conheça o jogador da NFL boicotado por liderar protesto contra o racismo

Colin Kaepernick se recusa a ficar em pé durante o hino nacional dos Estados Unidos

postado em 29/08/2017 11:30 / atualizado em 29/08/2017 13:54

Thearon W. Henderson/Getty Images/AFP
O pódio dos 200m rasos dos Jogos do México-1968 é um dos mais emblemáticos da história olímpica. Quando o hino americano ecoou no Estádio Olímpico Universitário, os velocistas negros americanos Tommie Smith (ouro) e John Carlos (bronze) baixaram a cabeça e ergueram um braço com uma luva preta em protesto contra o racismo. Era a entrada da saudação consagrada dos Panteras Negras no esporte, grupo que fez história no combate à discriminação racial nos Estados Unidos. A atitude foi severamente condenada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e pela mídia e autoridades americanas. Os dois acabaram condenados ao ostracismo e jamais voltariam a disputar uma edição dos Jogos.

Quase 50 anos depois do episódio envolvendo os velocistas, Colin Kaepernick, quarterback do San Francisco 49ers, time da NFL (liga de futebol americano do país), vem sofrendo destino semelhante ao dos velocistas ao protestar pela mesma causa, de maneira semelhante. Há um ano, Kaepernick se recusou a ficar de pé durante o hino nacional executado antes da partida contra o Green Bay Packers. O ato se repetiu 16 vezes naquela temporada. “Não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime os negros e pessoas de cor”, justificou. Hoje, sem contrato, ele sofre com um boicote dos 32 times da liga para encontrar outro lugar para jogar.

“Kaepernick é melhor que muitos dos quarterbacks empregados hoje. Os próprios números dele nos últimos anos mostram isso. Está desempregado por uma questão política. Ele está pagando por ter sido o precursor do comportamento e ter ficado sem contrato”, argumenta o vice-presidente da Federação Brasiliense de Futebol Americano, Guilherme Corrêa Rasi. Em 2016, o quarterback de 29 anos foi o 23º melhor da posição na NFL, segundo ranking da ESPN americana. Hoje, ele não está nem entre os 100 que se preparam para a temporada 2017/18 e podem ser cortados em setembro sem que o time o pague um dólar sequer.

A situação tem indignado atletas da liga. Na primeira semana da pré-temporada de 2017, o running back Marshawn Lynch, do Oakland Raiders, e o defensor Michael Bennett, do Seattle Seahawks, repetiram o ato de protesto. Na segunda-feira da semana passada, um grupo de 12 atletas brancos e negros do Cleveland Browns se ajoelharam antes da partida de pré-temporada contra o New York Giants. “Eu prefiro vê-lo se ajoelhar a ficar em pé, colocar as mãos para cima e ser assassinado. Espero que as pessoas abram os olhos para ver que realmente há um problema acontecendo, e algo precisa ser feito para que isso pare”, disse Lynch, em entrevista coletiva.

Outro que se pronunciou a respeito foi o wide receiver Doug Baldwin, companheiro de Bennett em Seattle. Para ele, o boicote da liga a Kaepernick tem um objetivo claro. “Os donos estão tentando nos mandar uma mensagem para ‘ficarmos na linha’. É frustrante, porque você quer ter caras com disposição para falar das coisas nas quais eles acreditem, você concorde com elas ou não. Isso está definitivamente desempenhando um papel agora, mais do que eu achava que estava”, reiterou, também em entrevista coletiva.

Boicote

Dois casos, em especial, evidenciaram o boicote ao jogador. Após a lesão do quarterback titular do Baltimore Ravens, Joe Flacco, rumores surgiram do interesse da franquia em Colin Kaepernick. O técnico e o gerente-geral do time pediram a contratação do jogador, mas foram vetados pelo proprietário Steve Bisciotti, doador ativo do Partido Republicano, que levou Donald Trump ao poder nos EUA. O dirigente alegou ter recebido “reações negativas” à possível chegada.

Situação semelhante aconteceu no Miami Dolphins. Sem o titular Ryan Tannehill, fora da temporada que ainda nem começou, a franquia do sul da Flórida preferiu oferecer US$ 10 milhões para retirar da aposentadoria o comentarista contratado pela Fox, Jay Cutler, a investir no ex-atleta de San Francisco. Cutler jogou apenas cinco partidas em 2016 e, mesmo assim, sofreu mais interceptações que Kaepernick.

Engajamento

Filho de pai negro e mãe branca e adotado por família branca na infância, Colin Kaepernick chegou à NFL em 2011. Já no segundo ano como titular, levou o San Francisco 49ers ao Super Bowl depois de 18 anos. O interesse pela causa racial viria só após sua entrada na liga. Hoje, ele mantém a organização Know Your Rights — Saiba Seus Direitos —, que ensina jovens de minorias étnicas sobre seus direitos e como fazê-los valer diante das estruturas de autoridade do Estado. Além disso, Kaepernick doa US$ 1 milhão anualmente a entidades que combatem a desigualdade social.

A decisão pelo protesto aconteceu semanas após o assassinato de dois negros por policiais em Minnesota e Louisiana. “Há um monte de racismo disfarçado de patriotismo neste país, e as pessoas não gostam de lidar com isso, não gostam de abordar qual é a origem desse protesto. Você tem jogadores em todo o país, não só na NFL, mas jogadores de futebol e da NBA e das universidades, que não gostam de abordar essa questão de que as pessoas de cor são oprimidas e tratadas injustamente. Eu não sei por que é assim ou do que eles têm medo, mas isso precisa ser falado”, disse à época.

Chip Somodevilla/Getty Images/AFP
A ação foi apoiada pelo então presidente americano, Barack Obama. Mesmo assim, não foi bem aceita no resto do país —principalmente na região sul, tradicionalmente mais conservadora. Uma pesquisa encomendada pela Agência Reuters revelou que 72% dos americanos consideraram o ato anti-patriota e desrespeitoso às forças armadas. Outros 61% discordaram das razões do protesto. Até o presidente americano, Donald Trump, se pronunciou contra o atleta. “Talvez seja bom ele achar um outro país”, sugeriu quando ainda era candidato à Casa Branca.

Para o doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) Wanderson Chaves, a retaliação comprova o racismo intermitente à sociedade americana. “Os conservadores não reconhecem o problema, e os liberais consideram ter feito a parte deles, o que significa dizer que também não reconhecem o problema. A sociedade norte-americana vive um crescendo de militarização e de encolhimento na dimensão da sua esfera pública, que torna qualquer expressão de inconformidade uma agressão ao princípio de ordem. Não é à toa que sejam as forças armadas a parte queixosa na denúncia de Kaepernick”, explica.

Legado

Se em 2016 o protesto de Kaepernick ganhou seguidores importantes nos Estados Unidos, a tendência é que o número aumente agora. “O assunto tinha esfriado até a passeata de supremacistas brancos na semana passada, em Charlottesville, mas deve ganhar cada vez mais força agora, e acho improvável que a liga puna todo mundo”, avalia Guilherme Corrêa. No ano passado, o linebacker Brandon Marshall, do Denver Broncos, chegou a perder patrocínio da empresa Air Academy Federal Credit Union (AAFCU) por ter manifestado apoio.

Além do grupo de jogadores do Cleveland Browns e de Marshawn Lynch e Michael Bennett, atletas de outras três franquias vêm repetindo o gesto nas duas últimas semanas. A emissora NBC, que transmitirá o jogo de abertura da temporada regular da NFL, em 7 de setembro, exibirá o hino nacional por conta da expectativa de novos protestos. “Ele está sem emprego, se sacrificou, falou e se ocupou de muitas coisas que estavam ocorrendo, sofreu ameaças de morte. Havia pessoas que não o queriam no campo, que o odiavam”, declarou Bennett. “Mas agora o que queremos é que sua mensagem siga viva, queremos liberdade e igualdade para todos.”

*Estagiário sob a supervisão de Marcos Paulo Lima